A quiralidade e a indústria farmacêutica

O uso da talidomida durante a gravidez gera fetos com malformação, sendo um exemplo de quiralidade em medicamentos
O uso da talidomida durante a gravidez gera fetos com malformação, sendo um exemplo de quiralidade em medicamentos

Compostos quirais geralmente possuem em sua estrutura pelo menos um carbono assimétrico. Com isso, essas substâncias apresentam atividade óptica e, portanto, possuem isômeros que são a imagem especular um do outro e não são sobreponíveis, sendo chamados de enantiômeros.

Esse conceito é muito importante para a indústria farmacêutica, pois quando determinado fármaco é desenvolvido é preciso saber quais são os seus efeitos no organismo humano. Se determinada substância for quiral ou assimétrica, ela pode possuir enantiômeros com atividades farmacológicas diferentes.

Isso significa que enquanto um enantiômero causa o efeito desejado no organismo, o outro pode não possuir esse efeito biológico. Se esses isômeros ópticos estiverem juntos (mistura racêmica), um pode anular o efeito biológico do outro, diminuir ou até mesmo levar a um efeito diferente do desejado, causando danos à saúde do paciente.

Isso é muito perigoso, ainda mais levando em conta que nos medicamentos sintéticos a tendência é a de existir a mistura racêmica, pois as reações estereoespecíficas (que levam a apenas um isômero) são difíceis e a separação dos isômeros é muito cara e complicada.

Um exemplo que mostra bem como esse assunto é de séria preocupação é a tragédia ocorrida com o medicamento talidomida. No final da década de 50 e início da década de 60 ele foi prescrito como sedativo leve e para eliminar as náuseas em mulheres grávidas em muitos países, principalmente na Europa, onde foi lançado. No entanto, as gestantes que utilizaram esse medicamento tiveram filhos sem determinados membros ou com membros deformados, como mãos, braços e pernas atrofiadas.

Crianças com malformação como efeito colateral da talidomida

Isso se deu porque, conforme mostra a imagem a seguir, a talidomida é um composto quiral com atividade óptica; sendo que possui um enantiômero dextrogiro (desvia o plano de luz polarizada para a direita) e outro levogiro (desvia o plano de luz polarizada para a esquerda).

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Enantiômeros da talidomida

A talidomida dextrogira ou enantiômero R possui mesmo as atividades analgésicas e sedativas, sendo inofensivo o seu consumo. No entanto, a talidomida levogira ou enantiômero S é teratogênico (do grego terás = monstro; gene = origem), ou seja, provoca mutações graves no feto. E o medicamento que foi amplamente receitado para as grávidas era uma mistura racêmica, o que significa que continha seus dois enantiômeros, em partes iguais.

Entretanto, mesmo a talidomida dextrogira, que inicialmente é inofensiva, não tem seu consumo indicado, pois ela sofre racemização no organismo, dando origem à forma levogira.

O número de crianças vítimas do uso desse medicamento chegou a aproximadamente 12.000.

Esse lamentável incidente chamou a atenção da comunidade científica e das autoridades do ramo farmacêutico sobre a importância de um centro assimétrico na atividade farmacológica. A quiralidade passou a ter destaque e a investigação cuidadosa do comportamento de fármacos quirais passou a ser fundamental antes de sua liberação para uso clínico.

Esse estudo é tão importante que, em 2001, três cientistas, K. Barry Sharpless, Ryoji Noyori e William S. Knowles, foram contemplados com o Nobel de Química por terem desenvolvido métodos para obter compostos enantiomericamente puros em escala industrial.  

William S. Knowles, Ryoji Noyori e K. Barry Sharpless, ganhadores do prêmio Nobel de Química de 2001

Um aspecto preocupante, no entanto, é que apesar de essa substância ter sido proibida, a sua síntese é barata e descobriu-se que ela pode ser útil no combate a doenças, como hanseníase, lúpus, câncer, vitiligo, aftas e tuberculose. Desse modo, ela continua no mercado e ainda causa o nascimento de crianças com malformação genética. Isso ocorre principalmente por dois fatores: desinformação e a prática da automedicação.

Por: Jennifer Rocha Vargas Fogaça

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