O dia 8 de março é internacionalmente reconhecido como o Dia da Mulher e disso, leitor, você já deve saber. Que tal fazermos uma breve análise sobre a participação feminina no mundo das letras? Você conhece as representantes femininas na arte literária? Por que será que quando pensamos em Literatura, na maioria das vezes, apenas nomes masculinos nos vêm à memória? É hora de ler para aprender, pois, quando conhecemos, temos a oportunidade de ganhar novos referenciais, certo?
Até pouco tempo, se pensarmos um pouco sobre nossa história recente, as mulheres estavam relegadas aos trabalhos domésticos e à criação dos filhos. Não que essas não sejam tarefas nobres, mas à mulher estava destinado o ofício de ser esposa, enquanto o marido saía para o trabalho e tinha um contato social mais intenso. As mulheres que fugiam à regra e arriscavam-se a ocupar lugares ou ofícios de predominância masculina eram malvistas e jamais recebiam o mesmo reconhecimento que os homens. Esse “apagamento” da voz feminina aconteceu em diversos setores da sociedade, inclusive na Literatura. Não que as mulheres não produzissem Literatura, mas certamente não recebiam as mesmas honrarias que os homens. No Brasil, temos várias representantes que produziram verso e prosa, adentrando em um universo que até então era extremamente masculino.
Selecionamos para você alguns poemas produzidos por escritoras brasileiras nos quais podemos notar claramente, presente nos versos, a perspectiva feminina. Vale lembrar que além de exímias poetas, as mulheres também produziram prosa da melhor qualidade, representadas por escritoras como Clarice Lispector e Rachel de Queiroz, esta última primeira mulher a ocupar uma vaga na Academia Brasileira de Letras, ambiente até então frequentado apenas por escritores. Em diversas temáticas, em diferentes épocas, a voz feminina conquistou seu espaço na Literatura e nas demais manifestações artísticas, provando que lugar de mulher é na Literatura, lugar de mulher é em qualquer lugar em que ela queira estar. Boa leitura!
Meu Deus, me dê a coragem
Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
o meu pecado de pensar.
Clarice Lispector
Dez chamamentos ao amigo
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
Hilda Hilst
Serenata
Permita que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.
Permite que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silêncio,
e a dor é de origem divina.
Permite que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.
Cecília Meireles
Casamento
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
Adélia Prado
Aventura na Casa Atarracada
Movido contraditoriamente
por desejo e ironia
não disse mas soltou,
numa noite fria,
aparentemente desalmado;
- Te pego lá na esquina,
na palpitação da jugular,
com soro de verdade e meia,
bem na veia, e cimento armado
para o primeiro a andar.
Ao que ela teria contestado, não,
desconversado, na beira do andaime
ainda a descoberto: - Eu também,
preciso de alguém que só me ame.
Pura preguiça, não se movia nem um passo.
Bem se sabe que ali ela não presta.
E ficaram assim, por mais de hora,
a tomar chá, quase na borda,
olhos nos olhos, e quase testa a testa.
Ana Cristina Cesar
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