Mário de Sá-Carneiro

A melancolia e o descontentamento são temas recorrentes na poética de Mário de Sá-Carneiro, um dos expoentes do modernismo português.

Expoente do modernismo português, Mário de Sá-Carneiro nasceu em Lisboa, no dia 19 de maio de 1890, e faleceu em Nice, França, em 26 de abril de 1926
Expoente do modernismo português, Mário de Sá-Carneiro nasceu em Lisboa, no dia 19 de maio de 1890, e faleceu em Nice, França, em 26 de abril de 1926

Nada me encanta já; tudo me aborrece, me nauseia. Os meus próprios raros entusiasmos, se me lembro deles, logo se me esvaem - pois, ao medi-los, encontro os tão mesquinhos, tão de pacotilha… Quer saber? Outrora, à noite, no meu leito, antes de dormir, eu punha-me a divagar. E era feliz por momentos, entressonhando a glória, o amor, os êxtases… Mas hoje já não sei com que sonhos me robustecer. Acastelei os maiores… eles próprios me fartaram: são sempre os mesmos - e é impossível achar outros… Depois, não me saciam apenas as coisas que possuo - aborrecem-me também as que não tenho, porque, na vida como nos sonhos, são sempre as mesmas. De resto, se às vezes posso sofrer por não possuir certas coisas que ainda não conheço inteiramente, a verdade é que, descendo-me melhor, logo averiguo isto: Meu Deus, se as tivera, ainda maior seria a minha dor, o meu tédio. 

Mário de Sá-Carneiro, in 'A Confissão de Lúcio' 

O fragmento acima é parte da novela A confissão de Lúcio, considerada por muitos críticos como a obra-prima do escritor português Mário de Sá-Carneiro. No trecho que você leu há pouco, é possível notar a temática que permeou todas as obras do autor: o abismo intransponível entre a realidade e a idealidade, dificuldade que acompanhou não só as personagens criadas pelo poeta, mas como a ele próprio ao longo de sua breve, porém intensa, vida.

Mário de Sá-Carneiro nasceu no dia 19 de maio de 1890 em Lisboa, Portugal. Viveu os primeiros anos da vida sob os cuidados dos avós, já que sua mãe morrera quando o escritor tinha apenas dois anos. Com o falecimento da esposa, o pai de Mário, um rico militar, iniciou uma vida de viagens e mesmo longe bancava os estudos do filho. Aos vinte e um anos, o escritor transferiu-se para Coimbra para dar início à Faculdade de Direito, não tendo concluído o primeiro ano do curso. Foi nessa época, mais precisamente no ano de 1912, que Mário conheceu aquele que viria a ser seu melhor amigo, o poeta e mestre dos heterônimos Fernando Pessoa.

Ao lado do poeta e amigo Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro fundou a revista Orpheu, publicação que difundia os ideais modernistas
Ao lado do poeta e amigo Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro fundou a revista Orpheu, publicação que difundia os ideais modernistas

Ao lado do amigo, com o qual trocou correspondências ao longo da vida em virtude do afastamento provocado por sua mudança para Paris, Mário ocupou lugar de destaque no modernismo português. Fundou, no ano de 1915, a revista Orpheu, publicação responsável pela divulgação dos ideais e da estética modernista. Sua obra literária é composta pelos livros Princípio (novelas - 1912), Memórias de Paris (coletânea de memórias - 1913), A Confissão de Lúcio (romance - 1914), Dispersão (poesia – 1914) e o último publicado em vida, Céu em Fogo (novelas – 1915). As cartas trocadas com Fernando Pessoa também foram compiladas e publicadas em dois volumes nos anos de 1958 e 1959, tornando-se objeto de análise para os estudiosos da literatura.

A vida em Paris logo ganhou contornos dramáticos, que culminaram no suicídio do escritor aos trinta e seis anos de idade. Entregue à boêmia, hábito que agravava sua já frágil saúde emocional, abandonou os estudos na Universidade de Sorbonne e intensificou o contato com Fernando Pessoa. Nas cartas, é possível notar a personalidade sensível, o humor instável, o narcisismo e o sentimento de abandono, além de uma linguagem irônica e autossarcástica, principais características de sua obra. A angústia, o desespero e o desejo iminente do suicídio podem ser observados em vários trechos das correspondências. No dia 26 de abril de 1926, hospedado em um hotel na cidade francesa de Nice, cumpriu seu intuito, consumindo vários frascos de estricnina, sucumbindo às crises sentimentais e financeiras que marcaram os últimos anos de sua conturbada vida. Dias antes de sua morte, escreveu aquela que seria a última carta:

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Meu querido Amigo.

A menos de um milagre na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas “cartas de despedida”... Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui... Já dera o que tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há quinze dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às mil maravilhas, mas não tenho dinheiro. […]

Mário de Sá-Carneiro, carta para Fernando Pessoa, 31 de Março de 1916.

Para que você possa conferir a força poética da obra de Mário de Sá-Carneiro, o Alunos Online traz para você um dos mais conhecidos poemas do escritor, no qual reverberam os sentimentos de não adaptação à vida, a angústia e a inquietude de quem se sabia efêmero diante da vida. Boa leitura.

Dispersão

Perdi-me dentro de mim 
Porque eu era labirinto, 
E hoje, quando me sinto, 
É com saudades de mim. 

Passei pela minha vida 
Um astro doido a sonhar. 
Na ânsia de ultrapassar, 
Nem dei pela minha vida... 

Para mim é sempre ontem, 
Não tenho amanhã nem hoje: 
O tempo que aos outros foge 
Cai sobre mim feito ontem. 

(O Domingo de Paris 
Lembra-me o desaparecido 
Que sentia comovido 
Os Domingos de Paris: 

Porque um domingo é familia, 
É bem-estar, é singeleza, 
E os que olham a beleza 
Não têm bem-estar nem familia). 

O pobre moço das ânsias... 
Tu, sim, tu eras alguém! 
E foi por isso também 
Que te abismaste nas ânsias. 

A grande ave dourada 
Bateu asas para os céus, 
Mas fechou-as saciada 
Ao ver que ganhava os céus. 

Como se chora um amante, 
Assim me choro a mim mesmo: 
Eu fui amante inconstante 
Que se traíu a si mesmo. 

Não sinto o espaço que encerro 
Nem as linhas que projecto: 
Se me olho a um espelho, erro - 
Não me acho no que projecto. 

Regresso dentro de mim, 
Mas nada me fala, nada! 
Tenho a alma amortalhada, 
Sequinha, dentro de mim. 

Não perdi a minha alma, 
Fiquei com ela, perdida. 
Assim eu choro, da vida, 
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo 
Uma gentil companheira 
Que na minha vida inteira 
Eu nunca vi... Mas recordo

A sua bôca doirada 
E o seu corpo esmaecido, 
Em um hálito perdido 
Que vem na tarde doirada. 

(As minhas grandes saudades 
São do que nunca enlacei. 
Ai, como eu tenho saudades 
Dos sonhos que não sonhei!...) 

E sinto que a minha morte - 
Minha dispersão total - 
Existe lá longe, ao norte, 
Numa grande capital. 

Vejo o meu último dia 
Pintado em rolos de fumo, 
E todo azul-de-agonia 
Em sombra e além me sumo. 

Ternura feita saudade, 
Eu beijo as minhas mãos brancas... 
Sou amor e piedade 
Em face dessas mãos brancas... 

Tristes mãos longas e lindas 
Que eram feitas pra se dar... 
Ninguém mas quis apertar... 
Tristes mãos longas e lindas... 

E tenho pêna de mim, 
Pobre menino ideal... 
Que me faltou afinal? 
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!... 

Desceu-me nalma o crepusculo; 
Eu fui alguém que passou. 
Serei, mas já não me sou; 
Não vivo, durmo o crepúsculo. 

Alcool dum sono outonal 
Me penetrou vagamente 
A difundir-me dormente 
Em uma bruma outonal. 

Perdi a morte e a vida, 
E, louco, não enlouqueço... 
A hora foge vivida, 
Eu sigo-a, mas permaneço... 

. . . . . . . . . . . . . . . 
. . . . . . . . . . . . . . . 

Castelos desmantelados, 
Leões alados sem juba... 

. . . . . . . . . . . . . . . 
. . . . . . . . . . . . . . . 

Paris, maio de 1913.

Por: Luana Castro Alves Perez

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