Entre tantos escritores e escritoras da literatura brasileira, Hilda Hilst chama atenção por sua singularidade. Poeta, dramaturga e ficcionista, destacou-se na poesia e na prosa: sua escrita, quase sempre polêmica, é reconhecível em seus poemas por vezes líricos, por vezes eróticos, por vezes os dois – lirismo e erotismo – caminhando de mãos dadas entre seus versos. Sua prosa é abundante, original, e nela também é possível notar toda a liberdade de quem tocou em temas considerados tabus, como a morte, o sexo e Deus, sem qualquer tipo de pudor.
Certa vez Hilda definiu-se como “umasómúltiplamatéria”: em cerca de quarenta títulos publicados, entre prosa, poesia e dramaturgia, revelou-se lírica, satírica, obscena, densa e, por vezes, hermética, característica que infelizmente afastou o grande público de sua obra. Não espere encontrar na escrita de Hilda Hilst metáforas fáceis ou vulgares. Ao longo de sua carreira literária, a escritora devotou amor à originalidade em um trabalho cuidadoso que uniu magistralmente linguagem e musicalidade e aliou questionamentos metafísicos e fatos cotidianos. Na Casa do Sol (onde hoje funciona a Instituição Hilda Hilst – Centro de Estudos Casa do Sol), a escritora fazia várias experiências literárias, sempre flertando com a física e a filosofia, características de sua obra.
Admirada por grandes nomes da literatura brasileira, entre eles Lygia Fagundes Telles e Caio Fernando Abreu, Hilda foi inspiração para tantos outros. A escritora, que nasceu no dia 21 de abril de 1930, faleceu aos 73 anos no dia 04 de fevereiro de 2004, deixando perpetuada uma obra essencial para a moderna literatura brasileira. Para que você possa conhecer um pouco mais sobre a obra poética daquela que foi “umasómúltiplamatéria”, o Alunos Online selecionou cinco poemas de Hilda Hilst que o conduzirão a um passeio pelos versos de uma de nossas mais autênticas expressões literárias. Boa leitura!
Amor
Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua de estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas.
E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena.
E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.
Árias Pequenas. Para Bandolim
Antes que o mundo acabe, Túlio,
Deita-te e prova
Esse milagre do gosto
Que se fez na minha boca
Enquanto o mundo grita
Belicoso. E ao meu lado
Te fazes árabe, me faço israelita
E nos cobrimos de beijos
E de flores
Antes que o mundo se acabe
Antes que acabe em nós
Nosso desejo.
É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d'água, bebida. A Vida é líquida.
Testamento lírico
Se quiserem saber se pedi muito
Ou se nada pedi, nesta minha vida,
Saiba, senhor, que sempre me perdi
Na criança que fui, tão confundida.
À noite ouvia vozes e regressos.
A noite me falava sempre sempre
Do possível de fábulas. De fadas.
O mundo na varanda. Céu aberto.
Castanheiras douradas. Meu espanto
Diante das muitas falas, das risadas.
Eu era uma criança delirante.
Nem soube defender-me das palavras.
Nem soube dizer das aflições, da mágoa
De não saber dizer coisas amantes.
O que vivia em mim, sempre calava.
E não sou mais que a infância. Nem pretendo
Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis!
Ter escolhido um mundo, este em que vivo,
Ter rituais e gestos e lembranças.
Viver secretamente. Em sigilo
Permanecer aquela, esquiva e dócil.
Querer deixar um testamento lírico
E escutar (apesar) entre as paredes
Um ruído inquietante de sorrisos
Uma boca de plumas, murmurante.
Nem sempre há de falar-vos um poeta.
E ainda que minha voz não seja ouvida
Um dentre vós, resguardará (por certo)
A criança que foi. Tão confundida.
Lobos? São muitos.
Mas tu podes ainda
A palavra na língua
Aquietá-los.
Mortos? O mundo.
Mas podes acordá-lo
Sortilégio de vida
Na palavra escrita.
Lúcidos? São poucos.
Mas se farão milhares
Se à lucidez dos poucos
Te juntares.
Raros? Teus preclaros amigos.
E tu mesmo, raro.
Se nas coisas que digo
Acreditares.