Cinco poemas de Ferreira Gullar

O engajamento político e social e a alta tensão psíquica e ideológica são características dos poemas de Ferreira Gullar, um dos mais importantes nomes da literatura contemporânea.

Capa do livro “Álbum de retratos – Ferreira Gullar”, do escritor Geraldo Carneiro. Editora Memória Visual
Capa do livro “Álbum de retratos – Ferreira Gullar”, do escritor Geraldo Carneiro. Editora Memória Visual

Ferreira Gullar certamente é o maior poeta brasileiro da atualidade. Um dos principais representantes da poesia contemporânea, Gullar, cujo nome de batismo é José Ribamar Ferreira, nasceu na cidade de São Luís, no Maranhão, no dia 10 de setembro de 1930. Poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta brasileiro, é um dos fundadores do neoconcretismo, movimento que nasceu das divergências em relação às propostas teóricas do Concretismo.

Ferreira Gullar ocupa a cadeira 37 da Academia Brasileira de Letras, da qual tomou posse no ano de 2014. Principal representante da poesia social brasileira, Gullar brindou o leitor com seus poemas marcados pela alta tensão psíquica e ideológica, poemas engajados e alinhados às propostas marxistas (foi militante do Partido Comunista Brasileiro e exilado político em diferentes países, entre eles Argentina, Chile e a antiga União Soviética), nos quais explora as propriedades gráficas e vocais das palavras, rompendo com a ortografia e com as convenções da lírica tradicional.

Atualmente, o poeta, afastado das questões sociais que tanto marcaram sua obra nos anos 1960 e 1970, dedica-se à poesia, análises e reflexões sobre artes plásticas, além de contribuir como colunista do jornal Folha de S. Paulo. Para que você conheça um pouco mais o universo poético desse importante escritor, o Alunos Online traz cinco poemas de Ferreira Gullar para que você tenha vontade de conhecer outros igualmente geniais desse nome indispensável para a compreensão da moderna literatura brasileira. Boa leitura!

Não há vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

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- porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

Ferreira Gullar

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

Capa do livro Lightning. Edição em inglês do livro Relâmpagos, de Ferreira Gullar. Editora Cosac & Naify
Capa do livro Lightning. Edição em inglês do livro Relâmpagos, de Ferreira Gullar. Editora Cosac & Naify

Madrugada

Do fundo de meu quarto, do fundo
de meu corpo
clandestino
ouço (não vejo) ouço
crescer no osso e no músculo da noite
a noite

a noite ocidental obscenamente acesa
sobre meu país dividido em classes.

Ferreira Gullar

Subversiva

A poesia
Quando chega
Não respeita nada.

Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
De qualquer de seus abismos

Desconhece o Estado e a Sociedade Civil
Infringe o Código de Águas
Relincha

Como puta
Nova
Em frente ao Palácio da Alvorada.

E só depois
Reconsidera: beija
Nos olhos os que ganham mal
Embala no colo
Os que têm sede de felicidade
E de justiça.

E promete incendiar o país.

Ferreira Gullar

Por: Luana Castro Alves Perez

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