“A gente” ou “nós”? Essa não é uma simples questão gramatical. A pergunta envolve fatores que a Sociolinguística ajuda a explicar e que vão muito além do certo ou errado ou do que está prescrito na gramática normativa.
Se você perguntar para um linguista mais tradicional, certamente ele se posicionará contra o uso do “a gente”. Dirá que a forma deve ser eliminada tanto da modalidade escrita quanto da modalidade oral. Agora, se você fizer a mesma pergunta para um linguista menos ortodoxo, ele dirá que essa é uma questão de adequação linguística, ou seja, você pode usar o “a gente” quando a situação não exigir tanta formalidade, caso contrário, o melhor é optar pelo pronome pessoal do caso reto “nós”.
A verdade é que os falantes consagraram, principalmente na fala, a locução pronominal “a gente”, que tem o mesmo valor semântico do pronome pessoal do caso reto “nós”. Sendo assim, seria difícil conter o uso da expressão que está presente até mesmo na linguagem literária, imortalizada em verso e prosa. Veja alguns exemplos:
No cancioneiro popular, composição de Antônio Almeida e João de Barro:
“(...) A saudade é dor pungente, morena
A saudade mata a gente, morena
A saudade é dor pungente, morena
A saudade mata a gente.”
(A saudade mata a gente)
Na obra-prima de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas:
“(...) a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é."
Até mesmo o genial Machado de Assis, famoso pelo fino trato com as palavras, rendeu-se à forma coloquial, tudo em nome da expressividade. Os trechos a seguir foram extraídos de Dom Casmurro:
"A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro. Também as há fechadas e escuras, sem janelas ou com poucas e gradeadas, à semelhança de conventos e prisões. Outrossim, capelas e bazares, simples alpendres ou paços suntuosos."
"A vida é cheia de obrigações que a gente cumpre, por mais vontade que tenha de as infringir deslavadamente."
O que isso quer dizer? Quer dizer que não existe certo ou errado nessa questão, até porque “a gente” e “nós” possuem o mesmo valor semântico, e fazer-se compreender é a regra de ouro da comunicação. Seria ingenuidade pregar a extinção do corriqueiro “a gente”, tido como incorreto e vulgar por muitos linguistas e até mesmo por quem não é linguista, mas mesmo assim adora corrigir os outros... Para que você não fique na dúvida, nos textos não literários prefira o pronome pessoal “nós”, fica mais adequado e menos coloquial. Mas na fala, não se acanhe, não há problema algum em substituir o “nós” pelo “a gente”. A língua portuguesa é assim, dinâmica e adaptável, e saber quando e como empregar os diferentes registros – linguagem padrão e linguagem coloquial – é o que nos torna poliglotas em nosso próprio idioma. Bons estudos!