A Primeira Guerra Mundial é, seguramente, um dos eventos mais funestos e sangrentos da história da humanidade. As batalhas de Ypres, Verdun, Ardenas, Liège, entre tantas outras, produziram milhões de cadáveres e semearam a destruição em muitas regiões do continente Europeu. O uso de armamentos pesados, como os primeiros tanques de guerra e os primeiros modelos de metralhadoras, bem como o uso de aviões e de gases tóxicos, produziu um ambiente catastrófico sem precedentes. Entretanto, houve um episódio muito curioso que ocorreu em dezembro de 1914, isto é, no fim do primeiro ano da guerra: houve uma trégua entre combatentes rivais no dia do Natal.
Essa trégua do dia 25 de dezembro de 1914 aconteceu nas imediações da cidade de Ypres, na Bélgica, onde um mês antes (em novembro) havia ocorrido a Primeira Batalha de Ypres, travada entre soldados alemães e os aliados ingleses e franceses. Depois dessa batalha, o inverno rigoroso atingiu a região e os soldados mantiveram-se refugiados em suas trincheiras sem poder combater.
Os combatentes ficavam em trincheiras separadas por um terreno muito curto, de algumas dezenas de metros, o que possibilitava que eles conseguissem ver e ouvir quase tudo que se passava no front inimigo. Quando veio a véspera do Natal, os soldados, tanto de um lado quanto de outro, começaram a dar demonstrações de descontração dentro de suas trincheiras. Há relatos de soldados que até tentaram montar árvores de natal dentro das trincheiras. O clima de descontração passou a gerar uma espécie de “contágio” mútuo entre os fronts inimigos. Outros relatos de oficiais descrevem que, aos poucos, alguns soldados começaram a sair de suas trincheiras e a andar desarmados pelo terreno (conhecido como “terra de ninguém”) entre uma trincheira e outra.
Esses soldados, que, em condições normais de guerra, teriam sido sumariamente fuzilados pelos inimigos, chegavam até o outro front e cumprimentavam os seus rivais, desejando-os “Feliz Natal” e, por vezes, oferecendo algum presente, como charutos, comida ou bebida. Muitos são os relatos que permaneceram sobre esse evento. Um deles é narrado pelo Capitão Sir Edward Hulse, do exército britânico, que viu, surpreso, quatro alemães se aproximarem de sua trincheira:
“Às 8:30, eu vi quatro alemães desarmados deixarem a sua trincheira e se dirigirem para a nossa. Eu mandei dois dos meus homens se encontrarem com eles, também desarmados, com ordens para que eles não ultrapassassem a metade do caminho entre as trincheiras, que distavam então de 350 a 400 jardas nesse ponto. Eram três soldados rasos e um padioleiro e o porta-voz deles disse que queria desejar a nós um Feliz Natal e esperava que nós, tacitamente, mantivéssemos uma trégua. Ele disse que havia morado em Suffolk, onde tinha uma namorada e uma bicicleta a motor.” [1]
A instalação desse clima amistoso entre os soldados inimigos e do acordo mútuo da trégua pode ter sido um reflexo direto da ambiência do Natal, que era uma prática partilhada por todos os envolvidos na guerra naquela região – grosso modo, todos ali (alemães, ingleses e franceses) eram cristãos. Contudo, apesar de esse fato inusitado ter demonstrado um momento de “humanização” da guerra, muitos dos comandantes envolvidos nessa “trégua” (que não foi oficial – isto é, respaldada pelas autoridades dos países envolvidos) foram punidos posteriormente pelos seus superiores.
O fato é que, depois do 25 de dezembro de 1914, esse tipo de trégua nunca mais se repetiu durante os anos em que transcorreu a guerra, que só teve fim em 1918.
NOTAS
[1] THEODORO, Reinaldo V. A Trégua de Natal. In: Clube SOMNIUM, 2004. p.4.