Durante meados do século XIX, na cidade do Rio de Janeiro, o carnaval representou, para além da manifestação festiva popular, uma disputa pela ocupação das ruas pelas distintas classes sociais da cidade. O entrudo era praticado no Brasil desde o período colonial e consistia em um jogo em que as pessoas atacavam-se com farinha, polvilho, água, limões de cheiro, café, groselha e outros líquidos, inclusive urina, nos três dias que antecediam a quaresma. Era o momento de escravos, africanos libertos e demais membros das classes populares divertirem-se coletivamente nos espaços públicos da cidade.
As classes populares tomavam as ruas para praticar o entrudo, ficando as camadas intermediárias da sociedade e a elite em suas casas. Não que a classe média e a elite se isolassem do restante da população. A participação no entrudo de rua se dava através das janelas, onde líquidos de origens diversas eram jogados nas pessoas que passavam pelas ruas. Havia ainda brincadeiras semelhantes no interior das residências, mas sem compartilhar da violência e suposta imoralidade que apontavam na manifestação popular de rua.
Porém, uma campanha contra o entrudo ganhou força no Rio de Janeiro após a década de 1840. Diversos jornais e membros da elite intelectual passaram a condenar o “jogo bárbaro, pernicioso e imoral”, como foi definido por Martins Pena. Em 1855, José de Alencar propunha, em folhetim publicado em um jornal do Rio de Janeiro, acabar com o entrudo e se praticar o carnaval de máscaras como ocorria em Veneza.
O carnaval de mascarados já ocorria no Rio de Janeiro desde meados da década de 1840, como aconteceu em 21 de fevereiro de 1846 no Teatro de São Januário. O objetivo de José de Alencar era, segundo José Ramos Tinhorão, abrir para a elite que habitava o Rio de Janeiro as ruas que durante o carnaval eram ocupadas pela patuleia, pelo povo, e que, para isso, fosse utilizada a força policial para reprimir a antiga prática carnavalesca popular do entrudo.1 O objetivo era afastar os bárbaros das ruas da cidade, para que os civilizados membros das classes médias e altas pudessem ocupá-las.
Em 1855, foi fundado o Congresso das Sumidades Carnavalescas, considerado o primeiro clube de carnaval do Rio de Janeiro, que atraía as classes mais bem colocadas na hierarquia social para desfilar pelas ruas, ostentando seus trajes e máscaras, entregando flores e confetes, o que distinguia, dessa forma, o entrudo com brincadeiras consideradas “limpas”.
Configurava-se assim uma tentativa de modernizar o espaço público da cidade, com a prática de atividades culturais civilizadas, semelhantes às europeias, que se opunham à barbárie do que ainda restava do período colonial brasileiro. Obviamente que a elite não questionava a manutenção da escravidão, apenas pretendia tirar de seu contato e de suas vistas a patuleia.
O entrudo pode ter conhecido seu declínio nas décadas finais do século XIX. Mas a prática carnavalesca popular não deixou de ocupar as ruas do Rio de Janeiro, principalmente com os cordões, que seriam um dos componentes do que conhecemos como o carnaval moderno, em sua origem. A prática de higienização e de elitização de ocupação dos espaços urbanos centrais não parou na luta contra o entrudo. A reforma urbana de Pereira Passos de 1906, que expulsou da região central do Rio de Janeiro os membros das classes exploradas, foi uma das grandes manifestações dos processos de modernização preconizados pela elite brasileira. Até o carnaval foi atingido pela reforma urbana. Em 1907, a recém-inaugurada Avenida Central via o desfile de um corso, em que os foliões desfilavam em veículos conversíveis, garantindo à elite da cidade sua prática carnavalesca civilizada.
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* Crédito da Imagem: Biblioteca Nacional da Austrália.
[1] Declaração dada ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 03 de abril de 2000, cuja íntegra pode ser lida aqui: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/257/entrevistados/jose_ramos_tinhorao_2000.htm . Acessado em 03/09/2013.