A Lei do Ventre Livre foi aprovada em setembro de 1871 e foi uma das leis abolicionistas, isto é, que promoviam uma reforma na escravidão, ampliando os grupos que tinham direito à liberdade. Essa lei determinava que os filhos de escravizadas nascidos a partir de 1871 seriam considerados livres com base em determinados critérios.
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A escravidão no Brasil
A escravização de africanos foi implantada no Brasil por volta da década de 1550 e tornou-se a principal forma de trabalho. No século XIX, os escravos ainda eram a principal mão de obra e o nosso país era um dos últimos no mundo que dependiam majoritariamente dela.
Havia defensores pela abolição desde a nossa independência, mas eles não eram grupo majoritário em nossa sociedade. A independência do Brasil aconteceu de maneira a não gerar grandes rupturas, uma vez que o interesse dos grandes fazendeiros brasileiros era o de manter a mão de obra escravizada, a mais importante.
O passar das décadas acabou trazendo novas ideias e novos interesses, e a contestação da escravidão começou a ganhar força. Ao mesmo tempo que havia a defesa da abolição por um viés humanitário, havia também interesses econômicos visando à substituição da mão de obra, e até interesses racistas daqueles que queriam livrar-se da escravidão para branquear a população brasileira.
De toda forma, no Brasil existiam vozes que, somadas à resistência dos escravos, começaram a denunciar os horrores da escravização de seres humanos. A resistência contra qualquer debate abolicionista era muito forte no país, e a questão da proibição do tráfico negreiro, por exemplo, só avançou por muita pressão internacional.
A Lei Eusébio de Queirós, aprovada em 1850, foi o resultado dessa pressão e só foi aprovada porque os grupos que defendiam a escravidão entenderam que a proibição do tráfico seria o único meio pacífico de garantir a instituição da escravidão no Brasil. Iniciou-se aqui uma transição muito lenta que foi abolindo a escravidão aos poucos para atender aos interesses dos escravagistas.
Internacionalmente, o Brasil ficava cada vez mais isolado, uma vez que, nação após nação, a escravidão ia sendo abolida. O cenário no final da década de 1860 era que só o nosso país e duas colônias espanholas — Cuba e Porto Rico — ainda mantinham a escravização dos negros. Na América do Sul, o Brasil era o único país a ter escravos, e isso chegou a ser um constrangimento durante a Guerra do Paraguai.
Percebe-se, portanto, que a manutenção da escravidão no Brasil tornava-se cada vez mais insustentável, e, para demonstrar isso, inúmeras vozes começaram a levantar-se exigindo a abolição. Outros com posições mais conciliadoras defendiam a ideia de que eram, no mínimo, necessárias reformas para ampliar-se a libertação de escravos.
Os argumentos utilizados por muitos anunciavam que, se a escravidão não fosse abolida gradativamente por meio de reformas, haveria o risco de o Brasil repetir os exemplos dos Estados Unidos e do Haiti. Nos Estados Unidos, a questão do trabalho escravo gerou uma guerra civil, e no Haiti, os escravos rebelaram-se contra os seus senhores, dando início ao processo de independência do país.
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Proposta de reforma
Um dos grandes nomes que defendiam que a abolição do trabalho escravo fosse realizada ao menos por reformas era o do político Joaquim Nabuco. Na década de 1850, ele já falava sobre a possibilidade de que revoltas de escravos acontecessem porque um número muito grande de africanos escravizados tinha sido enviado para o nosso país nas décadas de 1830 e 1840.
Na década de 1850, não houve espaço na nossa política para propostas reformistas a não ser para questões que envolvessem a proibição do tráfico negreiro. Uma vez que o tráfico negreiro foi encerrado definitivamente, a pauta do reformismo abolicionista retomou a agenda política do país e partiu do próprio imperador, d. Pedro II. Em 1865, ele propôs a realização de estudos que trouxessem alternativas para a abolição do trabalho escravo.
O estudo pedido por d. Pedro II foi delegado a um de seus conselheiros, José Antônio Pimenta Bueno (futuro Marquês de São Vicente). Os estudos de Pimenta Bueno traziam propostas para que o Legislativo pudesse debater a emancipação dos trabalhadores escravizados, e, em 1866, o conselheiro do imperador trouxe a sugestão de libertar os filhos de mulheres escravizadas.
A proposta de Pimenta Bueno foi apresentada ao Conselho de Estado para apreciação e levada ao Legislativo para eventual aprovação. Por duas vezes, o Conselho de Estado negou-se a sequer debater a proposta sob o argumento de que o país estava em guerra e questões como essa não eram a prioridade do momento.
O imperador aceitou o argumento de seu conselho, mas discursou sobre a questão da reforma da escravidão no Brasil em dois momentos. A pauta foi momentaneamente esquecida, e foi só em 1871, depois que a guerra tinha acabado, que a questão voltou ao centro do debate. A pauta do ventre livre estava pronta para avançar.
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O que determinava a Lei do Ventre Livre?
Em 1871, o Gabinete Ministerial era presidido pelo Visconde do Rio Branco, um político vinculado ao Partido Conservador. Foi ele o responsável por resgatar a proposta que debatia a liberdade dos filhos nascidos de mães escravizadas. Houve, claro, resistência dos escravagistas, que temiam perder a sua mão de obra, e um dos argumentos usados era o de que debater medidas de abolição no Parlamento incentivaria revoltas de escravos pelo país|1|.
A proposta que o visconde trouxe para o Parlamento resgatava a ideia de Pimenta Bueno, mas a historiadora Joseli Maria Nunes Mendonça também fala que vigorava em Cuba uma proposta desse tipo, conhecida como Lei Moret, e que na América do Sul uma lei do tipo tinha sido reproduzida em países como Chile, Peru e Colômbia|2|. Esses exemplos podem ter inspirado o visconde.
A questão da indenização defendida pelos escravagistas foi um foco de tensão, mas a proposta do visconde avançou e foi aprovada. O historiador José Murilo de Carvalho afirma que a aprovação aconteceu por 61 votos a favor e 35 votos contra|3|. A Lei do Ventre Livre, como ficou conhecida, entrou em vigência no dia 28 de setembro de 1871.
A Lei nº 2.040 ou Lei do Ventre Livre continha 10 artigos que determinavam que todos os filhos de escravizadas, nascidos após a aprovação da lei, seriam considerados livres. A lei, no entanto, apontava que o senhor de escravos tinha o direito de posse deles até determinado momento, devendo libertá-los oficialmente em duas hipóteses:
- Quando o filho da escravizada completasse oito anos. Esse caso previa indenização no valor de 600 mil réis com juros de 6% por ano.
- Quando o filho da escravizada completasse 21 anos. Esse caso não previa indenização em dinheiro.
Perceba que todo esse período já servia como indenização ao senhor de escravo, que ainda teria a possibilidade de explorar a mão de obra dos filhos das escravizadas até que eles tivessem 21 anos. Em todo caso, se o senhor de escravo preferisse libertá-los com oito anos, ainda receberia do governo um valor indenizatório.
A Lei do Ventre Livre ainda determinou a criação de uma matrícula pela qual os escravizados deveriam ser obrigatoriamente registrados em até um ano. A lei determinava que os que não fossem registrados nesse prazo seriam legalmente considerados livres. Isso permitiu que os escravizados que entraram ilegalmente no país após 1831 fossem legalizados.
A existência da matrícula também criava uma nova situação. Agora, o senhor de escravos era obrigado a provar que tinha a posse sobre aquela pessoa. Antes dessa lei, esse ônus era responsabilidade dos libertos. A existência de matrículas de escravos foi usada pelos abolicionistas que reviravam os registros delas atrás de ilegalidades. Quando encontravam algo errado, acionavam a Justiça para exigirem a liberdade do escravo envolvido.
A Lei do Ventre Livre contribuiu para enfraquecer momentaneamente o movimento abolicionista, embora tenha sido explorada por ele na luta. Entretanto, no fim da década de 1870, a força do abolicionismo retornou e a abolição foi realizada em definitivo, em 1888, por meio da Lei Áurea.
Notas
|1| MENDONÇA, Joseli M. N. Legislação emancipatória, 1871 e 1885. In.: SCHARCZ, Lília M. e GOMES, Flávio (orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 279.
|2| Idem, p. 279-280.
|3| CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 310.