As disputas entre Rússia e Ucrânia pela região da Crimeia vêm tomando conta dos noticiários do ano de 2014. Para entender essa questão, é preciso compreender o histórico e as recentes transformações no cenário político ucraniano, o que acabou por envolver relações diplomáticas entre os dois países e outras forças políticas, notadamente a União Europeia e os Estados Unidos.
- A divisão étnica e política na Ucrânia
A Ucrânia é um país marcado por uma ampla pluralidade política e linguística em seu território. Em sua região ocidental, a maioria dos habitantes fala ucraniano e possui, em geral, uma tendência em assumir a linha política que conduziria o país a uma aproximação com a União Europeia. Essa postura vem se alastrando pelo país desde a queda da União Soviética, da qual fazia parte a Ucrânia como uma de suas repúblicas.
Na região oriental do país, registra-se a presença de povos que utilizam o idioma russo, com uma grande quantidade de famílias cuja descendência se relaciona com o país vizinho. Por esse motivo, há algumas zonas em que se estabeleceu um forte sentimento russófono, em que se defende uma maior integração da Ucrânia com Moscou.
Essas relações estão mais ou menos definidas no mapa a seguir.
Mapa da concentração da população russa na Ucrânia ¹
Diante dessa configuração, emergiram vários grupos – partidários e não partidários – que passaram a disputar o poder na Ucrânia e o rumo dos direcionamentos diplomáticos e econômicos do país. Por esse motivo, a instabilidade política na região vem se elevando com o passar dos anos.
- Os protestos na Ucrânia e a derrubada do presidente Victor Yanukovich
O estopim para a eclosão de um cenário que já apresentava certa instabilidade política ocorreu quando o então presidente da Ucrânia, Victor Yanukovich, refugou em assinar um acordo que estava previamente firmado com a União Europeia. Tratava-se de um contrato de livre-comércio que praticamente incluiria a Ucrânia na União Europeia e a afastaria comercial e politicamente da CEI (Comunidade dos Estados Independentes) e, consequentemente, da Rússia.
A recusa de Yanukovich em assinar o tratado ocorreu pela pressão exercida pelo presidente russo, Vladimir Putin, haja vista que os ucranianos são extremamente dependentes do gás russo como fonte de energia. Além disso, a Rússia ofereceu uma série de acordos que totalizaria uma ajuda de 15 bilhões de dólares para fortalecer a economia da Ucrânia.
Esse acontecimento era o que os movimentos pró-Europa precisavam para manifestar os seus descontentamentos com o governo, que era politicamente conduzido pelos grupos pró-Rússia. Assim, iniciou-se uma série de protestos na Ucrânia pedindo não só a reaproximação com a UE, mas também a deposição do presidente Yanukovich.
Entre os grupos que comandavam as revoltas estavam o movimento Udar (“soco”, em ucraniano), liderado pelo ex-boxeador e personalidade carismática no país, Vitali Klitschko. Ao seu lado, encontrava-se o partido Svoboda (“liberdade”), um grupo de extrema-direita que se associa a ideais nazifascistas, tal qual outros grupos, como o Bratstvo e o Setor Direito.
Na liderança, à frente de todos essas composições, está Arseniy Yatsenyuk, um militante bastante influente e que comanda o “Pátria”, um dos maiores partidos políticos da Ucrânia. Ao seu lado está Yulia Tymoshenko, ex-primeira-ministra presa em 2009 em virtude de supostas fraudes durante acordos envolvendo justamente a comercialização de gás natural com a Rússia.
Após essa série de protestos na Ucrânia, que mobilizou uma considerável quantidade de habitantes no país, marcada pelos confrontos com a política, a tomada e queima de prédios públicos, além do registro de algumas mortes, uma série de transformações ocorreu. A primeira delas foi a renúncia do então Primeiro-Ministro Mykola Azarov em Janeiro de 2014. A segunda foi a derrubada e exílio de Viktor Yanukovich, que foi substituído por um governo provisório composto pelas forças políticas acima mencionadas.
Protestos antigoverno na Ucrânia ²
- A postura geopolítica da Rússia e a questão da Crimeia
O presidente Vladimir Putin, como era de se esperar, reagiu imediatamente à mudança política na Ucrânia, considerando a derrubada do presidente como um Golpe de Estado e iniciou uma série de retaliações ao país. A principal delas foi o início de uma intervenção sobre a Crimeia, uma província localizada no sul da Ucrânia e de grande valor estratégico, principalmente por se localizar em uma península banhada pelo Mar Negro, constituindo uma ótima saída para o mar (confira novamente o mapa no início do texto).
A Crimeia, na verdade, pertencia à Rússia, e mais da metade de sua população fala o idioma russo. Esse território foi cedido à Ucrânia em 1954, quando esta ainda fazia parte da URSS, pelo presidente soviético Nikita Khrushchev, que era ucraniano. Por isso, Putin considera que as transformações políticas no país configuram uma ameaça à segurança dos cidadãos russos residentes na província em questão.
Em 2010, inclusive, havia sido feito um acordo entre os dois países sobre a questão da Crimeia, em que os russos foram autorizados a instalar uma base militar na cidade de Sebastopol, no extremo sul da península, o que se mantém ainda hoje. Em troca, na época, a Rússia concedeu cerca de 40 bilhões de dólares em gás natural.
Após a tomada do poder pelas forças ucranianas, a primeira ação de Putin foi militarizar a região da Crimeia, ocupando aeroportos e bases militares. A ação foi facilitada pela pouca resistência do governo ucraniano e pelo fato de as forças militares da Crimeia serem, em grande parte, formadas por cidadãos de origem ou descendência russa. Essa decisão gerou um agravo nas relações diplomáticas, uma vez que Estados Unidos e União Europeia reagiram prontamente, ameaçando o estabelecimento de sanções diplomáticas contra a Rússia.
O Kremlin (sede do governo russo) não recuou e continuou com as suas intenções de anexar a Crimeia como parte de seu território. Por isso, foi marcado um referendo no local em que a população dessa província decidiria o futuro do país, o que ocorreu no dia 16 de março, com resultado vitorioso para os russos, sendo 96.7% dos votos favoráveis à anexação territorial.
Com isso, sanções e pressões externas foram impostas pelos norte-americanos e europeus. No entanto, elas resumiram-se ao congelamento de bens de alguns diplomatas russos e restrições na emissão de vistos, o que pode ser considerado como pouco significativo em termos geopolíticos. Apesar disso, a situação vem se tornando cada vez mais tensa, uma vez que uma provável guerra entre Rússia e Ucrânia eleva os temores de um conflito de amplas dimensões envolvendo potências nucleares, pois tal evento forçaria uma possível intervenção da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte).
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¹ Créditos da Imagem: NordNordWest / Wikimedia Commons. Dados: The Washington Post
² Créditos da Imagem: Photobank gallery / Shutterstock