Embora menos conhecidos, os poemas de Machado de Assis revelam características importantes da primeira fase literária do maior representante da Literatura Brasileira.
Pouca gente sabe, mas Machado de Assis, representante maior de nossa expressão literária, também foi poeta. Verdade que a poesia não foi o forte do “Bruxo do Cosme Velho” (alcunha em alusão ao bairro do Cosme Velho, na cidade do Rio de Janeiro), visto que sua Literatura está comumente associada aos romances, contos e crônicas que escreveu, mas certamente os versos do genial escritor merecem ser descobertos pelos leitores.
Contudo, não espere encontrar na poesia machadiana as mesmas características do prosador genial: avisamos desde já que não é possível estabelecer pontos de contato entre o poeta e o prosador da escola realista. Os poemas de Machado de Assis estão identificados com a fase romântica do escritor, findada após o exílio em Nova Friburgo: depois de três meses de férias para recuperar-se de problemas de saúde, o escritor abandonou a estética romântica e deu início à segunda fase de sua carreira, período em que produziu suas obras mais conhecidas, entre elas Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. A partir de então, não mais produziria versos, e o jovem romântico daria lugar ao ficcionista brilhante, cuja habilidade linguística e finas ironias tornar-se-iam traços marcantes de sua escrita.
A obra machadiana, por sua relevância e projeção internacional, é o maior cartão de visitas das letras brasileiras. Todavia, seus poemas permanecem desconhecidos, ainda que o escritor tenha publicado quatro livros do gênero: Crisálidas, de 1864, Falenas, de 1870, Americanas, de 1875, e Poesias completas, de 1901, livro que reúne toda a obra poética de Machado. Embora o poeta não possa ser comparado ao prosador, o gênero poesia consta em seu inventário literário, sendo fundamental para a compreensão da estética machadiana presente na primeira fase de sua carreira. O Alunos Online apresenta cinco poemas de Machado de Assis para você descobrir e apreciar a faceta menos conhecida do “Bruxo do Cosme Velho”. Boa leitura!
EPITÁFIO DO MÉXICO
Dobra o joelho: — é um túmulo.
Embaixo amortalhado
Jaz o cadáver tépido
De um povo aniquilado;
A prece melancólica
Reza-lhe em torno à cruz.
Ante o universo atônito
Abriu-se a estranha liça,
Travou-se a luta férvida
Da força e da justiça;
Contra a justiça, ó século,
Venceu a espada e o obus.
Venceu a força indômita;
Mas a infeliz vencida
A mágoa, a dor, o ódio,
Na face envilecida
Cuspiu-lhe. E a eterna mácula
Seus louros murchará.
E quando a voz fatídica
Da santa liberdade
Vier em dias prósperos
Clamar à humanidade,
Então revivo o México
Da campa surgirá.
(Crisálidas – 1864)
MUSA CONSOLATRIX
Que a mão do tempo e o hálito dos homens
Murchem a flor das ilusões da vida,
Musa consoladora,
É no teu seio amigo e sossegado
Que o poeta respira o suave sono.
Não há, não há contigo,
Nem dor aguda, nem sombrios ermos;
Da tua voz os namorados cantos
Enchem, povoam tudo
De íntima paz, de vida e de conforto.
Ante esta voz que as dores adormece,
E muda o agudo espinho em flor cheirosa,
Que vales tu, desilusão dos homens?
Tu que podes, ó tempo?
A alma triste do poeta sobrenada
À enchente das angústias,
E, afrontando o rugido da tormenta,
Passa cantando, alcíone divina.
Musa consoladora,
Quando da minha fronte de mancebo
A última ilusão cair, bem como
Folha amarela e seca
Que ao chão atira a viração do outono,
Ah! no teu seio amigo Acolhe-me, — e haverá minha alma aflita,
Em vez de algumas ilusões que teve,
A paz, o último bem, último e puro!
(Crisálidas – 1864)
QUANDO ELA FALA
She speaks!
O speak again, bright angel!
SHAKESPEARE
Quando ela fala, parece
Que a voz da brisa se cala;
Talvez um anjo emudece
Quando ela fala.
Meu coração dolorido
As suas mágoas exala.
E volta ao gozo perdido
Quando ela fala.
Pudesse eu eternamente,
Ao lado dela, escutá-la,
Ouvir sua alma inocente
Quando ela fala.
Minh'alma, já semimorta,
Conseguira ao céu alçá-la,
Porque o céu abre uma porta
Quando ela fala.
(Falenas – 1870)
Machado de Assis, em destaque, em fotografia do acervo da Biblioteca Nacional
SOMBRAS
Quando, assentada, à noite, a tua fronte inclinas,
E cerras descuidada as pálpebras divinas,
E deixas no regaço as tuas mãos cair,
E escutas sem falar, e sonhas sem dormir,
Acaso uma lembrança, um eco do passado,
Em teu seio revive?
O túmulo fechado
Da ventura que foi, do tempo que fugiu,
Por que razão, mimosa, a tua mão o abriu?
Com que flor, com que espinho, a importuna memória
Do teu passado escreve a misteriosa história?
Que espectro ou que visão ressurge aos olhos teus?
Vem das trevas do mal ou cai das mãos de Deus?
É saudade ou remorso? é desejo ou martírio?
Quando em obscuro templo a fraca luz de um círio
Apenas alumia a nave e o grande altar
E deixa todo o resto em treva, — e o nosso olhar
Cuida ver ressurgindo, ao longe, dentre as portas
As sombras imortais das criaturas mortas,
Palpita o coração de assombro e de terror;
O medo aumenta o mal. Mas a cruz do Senhor,
Que a luz do círio inunda, os nossos olhos chama;
O ânimo esclarece aquela eterna chama;
Ajoelha-se contrito, e murmura-se então
A palavra de Deus, a divina oração.
Pejam sombras, bem vês, a escuridão do templo;
Volve os olhos à luz, imita aquele exemplo;
Corre sobre o passado impenetrável véu;
Olha para o futuro e vem lançar-te ao céu.
(Falenas – 1870)
A Carolina
Querida! Ao pé do leito derradeiro,
em que descansas desta longa vida,
aqui venho e virei, pobre querida,
trazer-te o coração de companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
que, a despeito de toda a humana lida,
fez a nossa existência apetecida
e num recanto pôs um mundo inteiro...
Trago-te flores, - restos arrancados
da terra que nos viu passar unidos
e ora mortos nos deixa e separados;
que eu, se tenho, nos olhos malferidos,
pensamentos de vida formulados,
são pensamentos idos e vividos.