Orides Fontela foi uma poeta que viveu momentos nebulosos, mas marcou a Literatura Brasileira com uma poesia altamente reflexiva e sóbria.
Orides Fontela, nascida em São João da Boa Vista (SP), em 1940, começou a escrever quando criança, aos seis anos, após ser educada por sua mãe. Seus primeiros trabalhos foram publicados em 1956, no jornal local de São João da Boa Vista, antes mesmo que a poeta ingressasse na faculdade de filosofia da USP. Formou-se em 1972 e trabalhou como professora primária em várias escolas de São Paulo.
Antes de continuarmos, confira um dos poemas de sua primeira obra publicada e encante-se com essa escritora brasileira pouco conhecida por nós:
“Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.
(...)
Não há piedade nos signos
e nem o amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.
(Toda palavra é crueldade.)”
De Transpiração, 1969
Na poesia de Orides Fontela há muitas reflexões sobre a existência. Talvez essa característica esteja ligada à sua formação acadêmica em Filosofia. Entretanto, não devemos desconsiderar o fato de que a vida da escritora foi marcada por inúmeras dificuldades (fome, problemas de saúde, alcoolismo) e que isso a fez reduzir quase a zero sua expressão emotiva. A poesia da autora é mais do pensar do que do sentir, uma vez que, em face dos problemas vividos, Fontela isolou-se e evitou relações com outras pessoas. Em seus textos, não encontramos, portanto, nem tristezas nem extravasamentos emocionais. Há ausência de confessionalismo.
Por sua poesia ser mais do pensar, há o apagamento da subjetividade e a ênfase na objetividade. Nota-se, dessa forma, que o sujeito lírico de suas obras é reflexo de todos os homens e, por isso, categorizamos a escrita oridiana como filosófica. Tendo em vista a objetividade em seus poemas, destacamos um dos diferenciais da poética oridiana: dizer o máximo com o mínimo. A autora explora os desdobramentos metafóricos das palavras, o que faz com que os significados sejam inúmeros, mesmo quando a quantidade de palavras seja reduzida.
Esfinge
Não há perguntas. Selvagem
o silêncio cresce, difícil.
De “Rosácea”, 1986
O anti-pássaro
Um pássaro
seu ninho é pedra
seu grito
metal cinza
dói no espaço
seu ôlho
Um pássaro
pesa
e caça
entre lixo
e tédio.
Um pássaro
resiste aos
céus. E perdura.
Apesar.
De “Teia”, 1996
Essa multiplicidade de sentidos atribuída às palavras na escrita de Orides Fontela, que se configura como um convite a ver os nomes como símbolos, é uma das razões que levam alguns críticos a classificarem a poesia oridiana como neossimbolista. Mas a poeta não ficava feliz com rótulos: “A conclusão é que estou dando uma confusão na cabeça dos críticos. A conclusão é que é estranha. (…) Só se sabe o que eu não sou. Não é curioso?”¹ Porém, ainda que a escritora negasse o pertencimento ao simbolismo, nota-se em sua obra poética uma herança simbolista, uma vez que é fortemente marcada pela reflexão filosófica.
Entre 1969 e 1996, Orides Fontela publicou cinco livros: Transposição, Helianto, Alba, Rosácea, Trevo e Teia, todos desenvolvidos a partir de um peculiar repertório simbólico-metafórico.
- Transposição
Uma trança desfaz-se:
calmamente as mãos
soltam os fios
inutilizam
o amorosamente tramado.
Uma trança desfaz-se:
as mãos buscam o fundo
da rede inesgotável
anulando a trama e a forma.
Uma trança desfaz-se:
as mãos buscam o fim
do tempo e o início
de si mesmas, antes
da trama criada.
as mãos destroem, procurando-se
antes da trança e da memória.
Transposição, 1969, Instituto de Espanhol da USP, coordenado por Davi Arrigucci Jr.
- Helianto
São Sebastião
As setas
– cruas – no corpo
as setas
no fresco sangue
as setas
na nudez jovem
as setas
– firmes – confirmando
a carne.
1973, Livraria Duas Cidades.
- Alba
Clima
Neste lugar marcado: campo onde
uma árvore única
se alteia
e o alongado
gesto
absorvendo
todo o silêncio - ascende e
imobiliza-se
(som antes da voz
pré-vivo
ou além da voz
e vida)
neste lugar marcado: campo
imoto
segredo cio cisma
o ser
celebra-se
- mudo eucalipto
elástico
e elíptico.
1983, Roswitha Kempf. Vencedor do prêmio Jabuti.
- Rosácea
Se vens a uma terra estranha
curva-te
se este lugar é esquisito
curva-te
Se o dia é todo estranheza
submete-te
- és infinitamente mais estranho
1986, Roswitha Kempf.
- Trevo
Viajar
mas não
para
viajar
mas sem
onde
sem rota sem ciclo sem círculo
sem finalidade possível.
Viajar
e nem sequer sonhar-se
esta viagem.
1988, Coleção Claro Enigma, organização de Augusto Massi, Livraria Duas Cidades.
- Teia
Hamlet
… mais filosofias
que coisas!
1996, Geração Editorial.
Os amigos de Orides Fontela, como Antonio Candido, Marilena Chauí, Davi Arrigucci Jr., Augusto Massi, foram os salvadores e os companheiros de vida da autora. Massi foi quem não deixou, muitas vezes, a poeta cometer suicídio.
Por ter sido despejada, Orides passou seus últimos anos morando na Casa do Estudante Universitário, no Centro da cidade de São Paulo. A morte da autora aconteceu em novembro de 1998, aos 58 anos, na Fundação Sanatório São Paulo.
¹Entrevista a Michel Riaudel, op. Cit, p. 172. Disponível em <Teses.USP>. Acesso em: 27/01/2016.