Narração

Caracteriza-se como um relato de acontecimentos, fictícios ou não.

Caso parássemos para pensar, o ato de narrar encontra-se presente nas mais diversificadas situações cotidianas. Basta alguma coisa acontecer... que lá estamos nós, ávidos para relatá-la, muitas vezes, nos mínimos detalhes. Sem falar das notícias jornalísticas ou daquela entrevista (oral ou impressa), na qual o entrevistador, no meio da conversa, relembra fatos condizentes ao assunto abordado.

A verdade é que a narração, como bem nos retrata seu sentido literal, consiste no ato de relatar acerca de um determinado acontecimento, seja este real ou fictício. E por assim dizer, vale mencionar que a história contada precisa, necessariamente, ter sentido, mesmo quando se trata da oralidade. Contudo, em se tratando da escrita, os requisitos tendem a ser um pouco mais pontuados. Dessa forma, pensemos juntos sobre alguns pressupostos, um tanto quanto pertinentes:

→ Onde acontecem os fatos narrados?

→ Com quem?

→ Quando?

→ Como são revelados ao interlocutor? Que tipo de narrador? Ele participa da história ou somente retrata os fatos de maneira imparcial?

→ Como tudo acontece?

Para responder a essas indagações precisamos entender que a narração não subsiste sem a participação de alguns elementos, essenciais para que a interlocução seja perfeitamente materializada. Certamente que estamos nos referindo aos personagens, ao tempo, ao lugar onde tudo ocorre e, sobretudo, a como se dá o desenrolar dos fatos.
Tais elementos, ora abordados, posteriormente serão enfatizados de forma minuciosa. No momento, procuremos nos ater ao último deles: a maneira pela qual os fatos são desencadeados.

Para tanto, é bom que se diga que todo esse processo (a narração em si) se materializa por meio do enredo, que nada mais é do que a própria história, ou seja, a ideia que nos é transmitida. Assim, em termos gerais, ela se compõe da seguinte estrutura:

- De uma situação inicial, na qual são apresentados os personagens, tempo e o espaço.

- Logo em seguida, a situação inicial é, de repente, modificada. Com isso, um novo acontecimento começa a surgir, fazendo com que se estabeleça o que chamamos de conflito. 

- A partir daí tem-se o desenvolvimento da história, no qual os personagens buscam a solução para o conflito instaurado.

- Em meio a esse ínterim, chega o momento em que a narrativa apresenta o ponto de maior tensão – ora denominado de clímax.

- Por fim, temos o desfecho de tudo o que ocorreu. Dessa forma, constatamos que o conflito é solucionado de distintas formas, podendo ser de forma alegre, triste, cômica, e, muitas vezes, até trágica. 


Mediante tais elucidações, a título de colocarmos em prática os conhecimentos adquiridos, analisemos somente alguns trechos inerentes a um conto de um célebre representante de nossas letras: Machado de Assis.

Uns braços

INÁCIO ESTREMECEU, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco.

— Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau; sim, ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! Maluco!

— Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se para D. Severina, senhora que vivia com ele maritalmente há anos. Confunde-me os papéis todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir a outro, troca os advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e contínuo. De manhã é o que se vê; primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos.. . Deixe; amanhã hei de acordá-lo a pau de vassoura!
   
D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges espeitorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens.
   
Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não era propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituído de graça, ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer que era, do solicitador Borges, com esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito. Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870.
   
Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o ruído da mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; interrompia-se para virgular a oração com um golpe de vinho e continuava logo calado.
   
Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.
   
Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos.
  
  Acabaram de jantar. Borges, vindo o café, tirou quatro charutos da algibeira, comparou-os, apertou-os entre os dedos, escolheu um e guardou os restantes. Aceso o charuto, fincou os cotovelos na mesa e falou a D. Severina de trinta mil cousas que não interessavam nada ao nosso Inácio; mas enquanto falava, não o descompunha e ele podia devanear à larga.
Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dous, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas encaixilhados em casa. Vá que disfarçasse com S. João, cuja cabeça moça alegra as imaginações católicas, mas com o austero S. Pedro era demais. A única defesa do moço Inácio é que ele não via nem um nem outro; passava os olhos por ali como por nada. Via só os braços de D. Severina, — ou porque sorrateiramente olhasse para eles, ou porque andasse com eles impressos na memória.

— Homem, você não acaba mais? bradou de repente o solicitador.
   
Não havia remédio; Inácio bebeu a última gota, já fria, e retirou-se, como de costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto de zanga e desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janelas que davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista das águas próximas e das montanhas ao longe restituía-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma cousa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor. Tinha vontade de ir embora e de ficar. Havia cinco semanas que ali morava, e a vida era sempre a mesma, sair de manhã com o Borges, andar por audiências e cartórios, correndo, levando papéis ao selo, ao distribuidor, aos escrivães, aos oficiais de justiça. Voltava à tarde jantava e recolhia-se ao quarto, até a hora da ceia; ceava e ia dormir. Borges não lhe dava intimidade na família, que se compunha apenas de D. Severina, nem Inácio a via mais de três vezes por dia, durante as refeições. Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs; cinco semanas de silêncio, porque ele só falava uma ou outra vez na rua; em casa, nada.
[...]

                                                            Fonte: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/bracos.htm  



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Por: Vânia Maria do Nascimento Duarte

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