Num período demarcado por transformações políticas e sociais, manifestadas em plena fase pós-guerra (Segunda Guerra Mundial), o universo literário não ficou a mercê desses acontecimentos: ele também passou por uma revolução. Instituía-se, assim, uma literatura muito mais voltada para a forma, propriamente dita, do que para o conteúdo. Entrava em cena a fase do poema-objeto, do poema-palavra, sobretudo, e enfaticamente, valorizando a concretude das coisas. Referimo-nos, pois, à chamada geração de 1945, na qual um de seus maiores representantes foi João Cabral de Melo Neto, o poeta engenheiro.
Nascido aos nove dias do mês de janeiro de 1920, em Recife, passou a infância nos engenhos de açúcar em São Lourenço da Mata e Moreno. Completados seus dezessete anos, começou a trabalhar, inicialmente na Associação Comercial de Pernambuco, depois no Departamento de Estatística do Estado. Em 1942, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde fez concurso para ingressar na carreira pública. Foi nessa época que conheceu outros nobres intelectuais, como Murilo Mendes, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, entre outros.
Em 1945, após ter prestado novo concurso, ingressou na carreira diplomática e, a partir de então, serviu em vários lugares: Sevilha, Marselha, Madri, Barcelona, Londres, Dacar, Quito, Porto e Rio de Janeiro, vindo a se aposentar em 1990. Faleceu em 9 de outubro de 1999, no Rio de Janeiro.
Avesso às ideias promulgadas pelo Modernismo, sobretudo fazendo referência a Mário e Oswald de Andrade, o poeta cabralino (como antes dito) mostrou-se preocupado com a forma, com a estética. Para ele não havia razões para cultuar o prosaísmo, tampouco a ironia e o verso livre, por isso se torna evidente em seu trabalho uma retomada do modelo parnasiano-simbolista, sobretudo demarcado pelo culto aos versos regulares e às formas fixas, tudo em nome da afirmação estética.
Entre as características do poeta em questão estão a objetividade e a contenção, ou seja, longe de se comparar ao lirismo pungente dos artistas da era romântica, sua poesia é inspirada nos objetos, na realidade, no próprio cotidiano – fato que o faz se apresentar não como um artista sonhador, mas sim como um crítico e observador de tudo aquilo que o rodeia. Segundo ele mesmo afirmava, as palavras são concretas e possuem uma organização rigorosa, são “palavras-coisas” – oriundas de um trabalho lógico e racional.
Como fator resultante de tais posicionamentos, eis que todo seu percurso poético se subdivide, como ele próprio caracteriza, em duas vertentes básicas: a metapoética e a participante. Dessa forma, temos que na primeira delas as criações se apresentam como produto de uma investigação do próprio fazer poético, como, por exemplo, estas evidenciadas a seguir:
Tecendo a Manhã
1
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
Catar feijão
1.
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
2.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.
Detecta-se em tais criações que o poeta utiliza a linguagem para explicar a própria linguagem, sobretudo enfatizando o trabalho com a palavra, a arte de criar, a escrita propriamente dita (assemelhando-se ao ato de catar feijão) – fato que as caracteriza como poesias metalinguísticas.
Na outra vertente, chamada de participante, evidencia-se a temática voltada para os problemas nordestinos. Contudo, João Cabral de Melo Neto, ao contrário da prosa regionalista (de cunho crítico), transforma a questão da miséria, indigência, seca e fome em elemento poético, resgatando pura e simplesmente a essência da palavra. É o que podemos conferir em “Morte e vida Severina”, cujos fragmentos se encontram abaixo descritos:
O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI
— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.
[...]
Trata-se da história (retratada por uma sequência de cenas, reveladas ora sob monólogo, ora sob diálogo) de um retirante de 20 anos, Severino, que vai da Serra da Costela (limite da Paraíba com Pernambuco) até Recife em busca de melhores condições de vida.
Entre outras obras do autor, destacamos: Perda do sono (1942); O engenheiro (1945); Psicologia da composição (1947); O cão sem plumas (1950); O rio (1954); Morte e vida Severina (1956); Quaderna (1960); Antologia poética (1965); Educação pela pedra (1966); Museu de tudo (1975); Auto do frade (1984); Sevilha andando (1990); Obra completa (1994).