Entre os heterônimos de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro é considerado o mestre. Em sua poesia, a natureza e a antimetafísica ocupam lugar de destaque.
Alberto Caeiro, embora seja um heterônimo de Fernando Pessoa, é um poeta tão grandioso e autêntico como seu criador. Pessoa, como poucos, soube explorar com maestria o fenômeno da heteronímia, fazendo dessa a principal característica de sua obra. Ao lermos os poemas de Alberto Caeiro, percebemos a versatilidade e o brilhantismo daquele que é, sem dúvidas, um dos maiores poetas da literatura em língua portuguesa.
Assim como os demais heterônimos, Caeiro possui não só estilo próprio, como também uma biografia, comprovando assim a quase auteridade das “criaturas” de Fernando Pessoa. Nascido em Lisboa em 1889, Alberto passou quase toda a vida no campo ao lado de uma tia-avó idosa, já que muito cedo perdera os pais. Embora contasse apenas com a instrução primária, entre os heterônimos é considerado o mestre, aquele que escreve “por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever”, conforme a definição de Fernando Pessoa. Para o poeta, Caeiro é um outro alguém que nele reside, possibilitando a criação de poemas cuja temática predominante é a natureza e a realidade objetiva, distante do racional Ricardo Reis e do sensacionista Álvaro de Campos, outros importantes heterônimos.
O impulso criativo fez com que Fernando Pessoa produzisse, em um único dia, mais de trinta poemas sob a alcunha de um “recém-inventado” Alberto Caeiro. Esses poemas compõem o livro O Guardador de Rebanhos, uma das mais importantes obras do modernismo português, na qual o poeta entrega-se à livre descrição por meio de uma linguagem simples e direta, demonstrando desprezo pelas questões metafísicas ao recusar a subjetividade e a introspecção. Para ele só é possível viver sem dor e sentir sem pensar, resistindo ao pensamento filosófico que afasta o homem de sua essência.
O Meu Olhar
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...
Embora os quarenta e nove poemas tenham sido escritos em uma linguagem simples, evitando o uso de metáforas — recurso tão caro à literatura —, O Guardador de Rebanhos não pode ser considerado um livro de fácil leitura. A obra é um convite à reflexão, instiga o leitor a pensar sobre a maneira como vive e sobre o mundo que o cerca:
Da Minha Aldeia
Da minha aldeia veio quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe
de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos
nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
Em um de seus textos, compilados postumamente no livro Páginas Íntimas e de Autointerpretação, Pessoa melhor definiu aquele que tratava como seu mestre.
“(...) A vida de Caeiro não pode narrar-se pois que não há nela de que narrar. Seus poemas são o que houve nele de vida. Em tudo mais não houve incidentes, nem há história. […] Ignorante da vida e quase ignorante das letras, sem convívio nem cultura, fez Caeiro a sua obra um progresso imperceptível e profundo, como aquele que dirige, através das consciências inconscientes dos homens, o desenvolvimento lógico das civilizações. […] Por uma intuição sobre-humana, como aquelas que fundam religiões, porém a que não assenta o título de religiosa, por isso que repugna toda a religião e toda a metafísica, este homem descreveu o mundo sem pensar nele, e criou um conceito do universo que não contém uma interpretação (...)”.
Conforme a biografia de Alberto Caeiro, criada por Fernando Pessoa, o poeta do campo, o singelo guardador de rebanhos, faleceu ainda jovem, vitimado pela tuberculose no ano de 1915. Para você conhecer um pouco mais da poética de Caeiro, o Alunos Online selecionou um de seus mais belos e emblemáticos poemas, cujos versos despertarão sua admiração e interesse. Boa leitura!
Pensar em Deus
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!