Quando discutimos a questão do tráfico negreiro, observamos que a maioria dos livros insiste em trabalhar com os interesses econômicos e índices que revelam a lógica empreendida por essa prática. Contudo, a experiência vivida por aqueles que foram brutalmente arrancados de sua terra natal e cruzaram o Atlântico para uma vida de exploração conta com poucos relatos. Apesar disso, podemos ver nas descrições disponíveis, outra faceta do horror que marcou essa gananciosa ação.
Depois de capturados e negociados com os mercadores europeus, os africanos apresados sofriam várias punições físicas e eram submetidos a diversas privações. A falta de alimento era uma terrível tática pela qual os traficantes buscavam viabilizar o controle dos africanos submetidos. Quando alimentados, os africanos recebiam uma débil dieta composta por carne seca, farinha de mandioca e arroz.
Com o passar do tempo, a exposição do corpo àquela situação degradante acabava transformando os porões do navio negreiro em um foco disseminador de epidemias. O escorbuto era uma das doenças mais facilmente contraídas, em razão da carência de vitamina “C” na alimentação dos tripulantes. A fama dessa doença acabou fazendo com que fosse também popularmente conhecida como “o mal de Luanda”, região de onde saía uma expressiva quantidade de escravos para o Novo Mundo.
Em contrapartida, não podemos pensar que a situação dos africanos a bordo dos navios se resumia à completa desolação. Para que o número de escravos mortos durante a viagem diminuísse, alguns marinheiros organizavam pequenos grupos que circulavam pelo navio para se exercitar e tomar um pouco de sol. Dessa forma, as “mercadorias” poderiam ser valorizadas nas praças do continente americano.
O medo de uma revolta de escravos dentro de uma embarcação era muito grande. No longo período em que permaneciam juntos, muitos africanos passavam a se solidarizar e tramar planos de rebelião contra seus algozes. Por isso, era sempre importante ter algum marinheiro ou tripulante que fosse capaz de compreender aquilo que era conversado entre os cativos. Além disso, havia uma grande preocupação em manter os africanos longe das armas de fogo.
O choque cultural provocado por essa atividade também foi responsável pela elaboração de alguns mitos relacionados ao tráfico negreiro. Vários integrantes de diferentes povos africanos acreditavam que os brancos recolhiam os negros para dentro da embarcação com o intuito de comer sua carne. De fato, esse “mito canibal” era a primeira manifestação de um traumático processo de hibridação cultural em que os escravos entravam em contato com os valores da cultura europeia e americana.
Acreditando que a experiência sofrida nos navios marcaria os últimos instantes de sua vida, muitos negros manifestavam certa alegria ao chegarem vivos na costa americana. A oportunidade de sobreviver aos horrores em alto mar era um alento que transformava a preservação de si em uma missão diária. Dessa forma, vários dos traços do mosaico cultural africano influíram em diversas práticas das culturas dos povos americanos.